Entrevista com Ana Cunha, diretora de Relações Governamentais e Responsabilidade Social da Kinross do Brasil

Pesquisas mostram: a diversidade aumenta a produtividade, a inovação e o clima do ambiente de trabalho. Então, por que, na mineração brasileira, as mulheres ainda representam apenas 15% de toda a força de trabalho, enquanto na economia, de uma forma geral, esse índice, embora ainda insuficiente, chega a 44%? 

Para responder essa e outras perguntas, entrevistamos a diretora de Relações Governamentais e de Responsabilidade Social da Kinross, Ana Cunha, que venceu os desafios de gênero e raça em ambientes historicamente masculinos. Ana Cunha não só se tornou diretora de uma multinacional como comanda uma das áreas também tradicionalmente dominada por homens, a de relações governamentais. E foi reconhecida como uma das 100 mulheres mais inspiradoras do mundo pela 4ª edição do Women in Mining UK (WIM).

Atualmente Ana Cunha também lidera o comitê ESG da alta administração do Ibram, o Instituto Brasileiro de Mineração. E tem atuado não só pelo aumento da diversidade e inclusão na Kinrosscomo também no setor, que busca atingir a meta de 25% de mulheres em cargos de liderança até 2030.

Segundo ela, nas empresas, o machismo se esconde mais nas relações do que nas rotinas de trabalho. “Nós somos formados racistas, misóginos e machistas. Então nossas atitudes diárias refletem isso”, disse.

Trajetória

Formada em Relações Públicas, começou a carreira como analista na área de comunicação empresarial, passou pelos cargos de coordenação e gerência, acompanhada com uma sólida formação acadêmica, como pós-graduação internacional pela Syracuse University.  Em uma segunda fase da carreira, conciliou as atividades em Comunicação Corporativa com a área de Desenvolvimento Social e Relacionamento. Especializou-se na Universidade de Sorbonne (Paris-França). 

Revista MINÉRIOS:  Em 2020 a senhora disse, em Londres, ao ser reconhecida como uma das cem mulheres mais influentes do setor: “Amineração passa por uma transformação, com adoção de praticas mais sustentáveis e foco na diversidade e inclusão”. O que mudou desde então?

Temos evoluído, mas mudanças substanciais ainda não estamos vendo. E acho que isso é parte de um processo de mudança da sociedade. Eu não vou ver. Gerações muito na frente verão. Mas o que é possível ver claramente é a mudança de proposição do setor. Hoje esse assunto está na pauta. Em 2020 já estava? Sim. Mas hoje ele está com metas, programas, acompanhamento, Issonão só dentro das empresas como dentro do setor. O Ibram faz um acompanhamento desse compromisso, temos uma carta ESG que tem 12 compromissos com a sociedade, entre eles a diversidade e inclusão, com metas e métricas. Teremos fases, optou-se por começar com questões de gênero e deficiência. Quando eu olho esse um ano e meio, estamos mais propositivos. 

Que metas poderiam ser destacadas?

Uma das metas é ter 25% de mulheres nos quadros de liderança até 2030. Hoje o setor tem 15%, no ano passado eram 13%. Nesses dois anos o Woman in Mining no Brasil vem se consolidando, fazendo estudos e estabelecendo planos de ação em diversas áreas, não só para essa questão das mulheres na liderança e nos quadros gerais. Tem um trabalho que é muito importante com as comunidades, onde as operações estão instaladas. Se pensarmos, historicamente, nos grupos vulneráveis, tem sempre a mulher ali inserida nessa categoria. E os projetos de desenvolvimento sustentável focam muito nesses grupos. 

Temos um trabalho em Paracatu (MG voltadonessa juventude, mulheres e homens, mas umolhar muito direcionado para essas meninas, de formação e trabalho. Este ano nós desenvolvemos dois trabalhos de formação profissional para a mulher no setor mineral, em áreas tradicionalmente masculinas, como mecânica, operação.

Uma questão importante é que, desses 15%, mesmo que eu não saiba estratificar, a maioria certamente está em áreas consideradas soft, comunicação, recursos humanos, parte administrativa. Sabemos que de soft essas áreas não têm nada, mas precisamos olhar isso. 

A senhora acredita que a meta será atingida?

A gente tem muito o olhar de se juntar ao esforço setorial para alavancar esses números. Dentro da nossa capacidade de formação, de absorção e de retenção. Trabalhar nessa trilha, nessa jornada do desenvolvimento da mulher, o nosso foco está muito em ser capaz de que o nosso esforço componha nossa meta setorial, de que a gente consiga, de fato, juntos, chegar a 25% de mulheres até 2030. Nós achamos que vamos dar conta. Temos olhado todas as oportunidades.

Acredito que vamos conseguir, não pelo número, mas porque faz sentido, a gente acredita que, de fato, esses espaços mais plurais vão ser benéficos para o negócio e para sociedade.

As pesquisas mostram que a diversidade aumenta a produtividade, a inovação, a moral do ambiente de trabalho com ideias de trabalho. Então, automaticamente, se você tem mais produtividade, melhor ambiente de trabalho…

Como tem evoluído essa percepção globalmente, na sua avaliação?

Esse movimento pela diversidade e inclusão não é novo, secularmente, se estamos aqui trabalhando, podemos votar e não somos propriedade do marido e do pai, muita luta anterior veio, não é? Eu acho que, naturalmente, nas corporações, você tem o advento das questões de sustentabilidade, as tendências pautam esse assunto, e o ciclo volta para dentro das corporações. E a diversidade e inclusão são fatores de alavanca para essa sustentabilidade. Então você tem uma pressão externa que gera um movimento interno, em resposta a essa sociedade que anseia uma agenda diferente da que até então a gente vinha discutindo mais fortemente. Empresas como a nossa e como a maior parte das mineradoras que operam no país também são multinacionais também se beneficiam dessa discussão mais avançada, onde essas discussões estão mais aceleradas. Eu acredito que esse é um movimento muito grande também das multinacionais nessa cascata que vêm das corporações. 

Pode falar um pouco mais sobre como a agenda ESG beneficia o negócio?

Teu negócio vai resultar em melhores números. Não tem mágica. O mercado impõe que você pense de diferentes formas, e você só faz isso com diversidade. Naturalmente, nas corporações, você tem o advento das discussões de sustentabilidade, da pressão de investidores, que olham para o mercado e as tendências pautam esse assunto naturalmente ela volta naturalmente dentro das corporações. E sustentabilidade está muito ligada à diversidade. 

Na mineração, sabemos que 15% das pessoas são mulheres. Porém, na economia, de uma forma geral, esse número é de 44%. Por que essa diferença?

Eu acho que na mineração é menor, mas em outras indústrias esse índice é similar. A indústria de base tem características historicamente mais masculinas. Não acho que tenha um fator propositvo de exclusão das mulheres dentro da mineração. A exclusão é geral, em alguns setores, mais por características da atividade, e é onde eu acho que a mineração se encaixa. E acho, sim, que, para além dessa característica, temos uma outra, e não temos que ter vergonha dela, de que esse é um setor muito tradicional. Tradicional no sentido de valores de gestão, modelos, que vem se modernizando muito, mas que tem uma base tradicional que se reflete nessa baixa diversidade do setor. Na política, por exemplo, você tem um domínio masculino enorme nas casas, e uma minoria é de mulheres. Em setores mais tradicionalistas, temos mais dificuldades de mudar uma situação. 

A senhora já sofreu preconceito de gênero ou de raça?

Desde o dia que eu nasci, né? (Risos). Se eu falar para você, assim, explicitamente, que eu já fui verbalmente discriminada, de uma maneira direta, minha resposta é não. Eu não tenho essa história para contar. Ninguém nunca chegou para mim e disse: ‘Alisa esse seu cabelo aí porque com esse seu cabelo não pode entrar aqui’. Eu conheço pessoas que já passaram por isso, de o chefe literalmente falar: ‘Olha, esse seu cabelo não dá’. É muito comum. Não estou falando de pessoas que trabalham em qualquer lugar, não. São pessoas que eu conheço. Eu nunca passei por isso. Mas é claro que enfrentei situações minha vida inteira que perpassam as relações e as pessoas. Nós somos formados racistas, misóginos e machistas. Então nossas atitudes diárias refletem isso. Hoje eu saberia dar nomes a várias coisas que há 15 anos eu não soube, embora eu tenha sempre reconhecido as situações. Engraçado que eu estava pensando sobre isso outro dia. Lá no início da minha carreira, quando eu era analista, era responsável pelo programa de visitas à empresa. Muito comum, você recebe todas aquelas pessoas. Por que? Você, mulher, ali… A parte dessas visitas, dessas relações institucionais em si, elas são muito machistas. Mesmo hoje em dia, ainda passo por muitas coisas, como ser interrompida em uma fala, ou de alguém se apropriar da minha fala, ou de alguém achar que eu não sou necessariamente a melhor pessoa para desempenhar um papel historicamente desempenhado por homens. 

E como a senhora reage nessas situações, como, por exemplo, quando alguém te interrompe?

Hoje eu já digo: ‘Você está me interrompendo, eu quero terminar a minha fala’. Então a gente faz isso, identifica que está passando por microagressões, no final das contas, que vão compondo o dia a dia. 

Agora eu vejo claramente também, por exemplo, o tempo que eu demorei para avançar na minha carreira também é muito diferente do tempo que homens, com posições similares, normalmente levam. Isso tem muito a ver com vieses inconscientes: `você é uma mulher, uma mulher negra`. Não é um viés consciente. Empresas pelas quais eu passei, enfim, a gente tem códigos de ética muito sérios. Processos de compliancesérios, também, trabalham o tempo todo para que coisas discriminatórias não aconteçam. Agora, nós vivemos em uma sociedade cheia de vieses. As pessoas que tomam decisões diárias, todos nós temos os nossos.

Que conselho a senhora daria para outras mulheres, com base na sua própria experiência e na sua própria postura diante desses acontecimentos?

Primeiro eu acho que a gente precisa se posicionar, sempre. E se posicionar não é fácil, em ambiente hostil requer coragem. Porque toda ação tem uma reação. Mas eu acho que, antes de mais nada, você tem que se conhecer, os seus valores, o seu potencial, conhecer as dinâmicas e entender porque aquelas coisas acontecem. Quando você nem identifica que está numa situação de vulnerabilidade, assédio ou desrespeito…Porque a gente normaliza. Quantas vezes na minha vida eu escutei: ‘Ah, isso é normal. Todo mundo faz’. Não! Comigo não vai fazer! Não é normal. Acho que nós precisamos romper um silêncio, o que é difícil. É difícil ainda hoje, porque tem muita coisa em jogo. Não é só um emprego. 

Recentemente a senhora disse: “Precisamos motivar cada vez mais essas mulheres para fazê-las enxergar o quanto são incríveis, mas também sensibilizar as empresas para o impacto positivo que essa equidade agrega em toda a cadeia”. Por que isso é tão difícil?

É tão difícil porque nós, mulheres, somos criadas e educadas para outras bases, outros valores, para sermos sempre aquelas que seguem, não as que lideram. Nas dinâmicas das relações, a gente nunca está em primeiro lugar. No nosso imaginário, se pensarmos: quem você imagina que é o ou a profissional que é o sonho ter. Sempre será um homem. O nosso imaginário de liderança politica também é masculino. Todos esses lugares são masculinos. Além disso, o machismo em si tem como base te descredibilizar, é um movimento que transformar as mulheres em inseguras das nossas capacidades. 

Como o gaslighting, por exemplo, que ocorre não nos relacionamentos pessoais, mas também no trabalho…

Exatamente. “Você que é a louca”. “Você não viu isso”. “Não é bem assim”. E tem sempre alguém que sabe mais que a gente. Todas essas manifestações, essas ferramentas de machismo acontecem em todas as nossas relações. O trabalho é só um reflexo, mas a forma como nós somos criadas em casa, como aprendemos o que é ser mulher, as “obrigações” de casa. As pessoas falam que a Síndrome do Impostor é algo da mulher. Eu acho que isso é algo criado pelo homem que impacta a mulher. Não é que a gente se sente insegura, que a gente acha que não é merecedora, o que a gente não é tão boa por uma questão natural da mulher. Não, isso é imputado a nós. Tem uma coisa muito importante que eu sempre friso. A autoestima é central na vida de qualquer pessoa, mas na vida de uma mulher é essencial. Se você tem uma baixa autoestima, você não vai a lugar nenhum. Todos os movimentos são para divulgar nossa autoestima. Não gosto muito de dar essas dicas porque a gente tira complexidade do impacto do machismo no feminino. Na minha situação, que tenho uma boa autoestima, pode ser mais fácil. Na maior parte da população, como ter autoestima sendo carente, vulnerável socialmente e economicamente?

Uma outra questão envolve a insatisfação com o ambiente de trabalho. Uma pesquisa recente no setor de aviação mostra que seis em cada dez mulheres em cargos de liderança deseja pedir demissão. É assim também no setor da mineração?

Tem pesquisas no setor mineral também que mostram por que as mulheres saem. De forma muito rasa, tem um fator central que é o não crescimento na carreira no médio prazo. Elas entram atraídas pela grandiosidade – e é um setor, de fato, que remunera bem e tem um pacote de benefícios muito bom -, mas, depois, começam a enfrentar as hostilidades. Não é só questão de crescimento, mas também, como eu acredito que deve ser na aviação, de ambiência. E aí você acaba saindo. De novo: essas mulheres são fracas? Não, essas estruturas que precisam mudar para que todos se sintam bem e queiram ficar. 

Além de ser diretora de Responsabilidade Social, a senhora dirige a área de Relações Governamentais da Kinross, historicamente dominada por homens. Como é esse setor?

É um ambiente super masculino. Mesmo na minha ascensão para essa área, eu vivi isso. Ainda existe uma visão de que esse é um clube dos homens. São os homens que fazem as relações governamentais. E são mesmo, na maior parte. Já somos muitas mulheres, sem dúvida nenhuma, eu vejo pelas outras empresas, mas ainda é uma área majoritariamente masculina. É um ambiente difícil, difícil de entrar, ficar, se colocar. Engraçado, a minha outra área de atuação – comunicação e comunidade – são áreas muito liderada por mulheres. As equipes são muito femininas. Isso tem dois lados: o lado bom é que, independentemente de ser uma construção cultural, nós somos mais sensíveis ao coletivo. Cuidar do coletivo: como estamos olhando para o bem estar de todos? Mas isso não deveria ser uma questão de feminino ou masculino. É um olhar humano que precisamos ter. É importante dizer que o machismo está presente nas relações e não na execução dos trabalhos. Na área de relações governamentais, por outro lado, você também enfrenta o machismo na rotina do seu trabalho. Ele é muito forte nesses ambientes. É quase como se você fosse um corpo estranho.

Que balanço a senhora faz da atuação da Kinross na área de diversidade e inclusão nos últimos anos?

Esse é um processo estruturado desde 2020, quando demos um passo maior e decidimos: “vamos fazer um censo da nossa diversidade”! É uma coisa que o presidente do Ibram citou no Diversibram. Precisamos fazer um censo do setor, e nós fizemos isso lá atrás, há dois anos. E agora vamos fazer de novo. Porque antes de começar os trabalhos é preciso entender quem somos, quantos somos e em que níveis hierárquicos. Esse foi o passo inicial para a implantação do nosso processo e do nosso projeto. Então o primeiro ano foi de formação de lideranças e altas lideranças e do corpo de funcionários total. Estamos ainda no segundo ano, mais voltado para a educação, letramento, sobre o tema diversidade e inclusão. É uma sensibilização e formação. Por que isso é importante? Para tenhamos um grupo de pessoas envolvidas nesse assunto para que a mudança faça sentido. Então a partir dai implementamos mudanças no processo de recrutamento, que é feito às cegas. Trazer parceiros especializados em bancos de currículos com recortes de todas as gamas de diversidade que temos. E começamos a participar, juntamente com a Kinross WorldCorporation, em programas de aceleração profissional para mulheres. Existe um programa de networking que está na segunda edição que tem muito o objetivo de fortalecer as profissionais nas suas redes e nas suas capacidades, técnicas e emocionais. É um programa importante quando se pensa em longo prazo, na retenção das mulheres. E, em paralelo, temos trabalhado os programas com as comunidades. Além disso, criamos o comitê de diversidade.

O que o comitê faz?

Ele basicamente discute e identifica as necessidades dos empregados, as demandas e proposições que a empresa têm. É voluntário e tem representantes de todos os recortes, então não é uma imposição. O funcionário se candidata para participar. Essencialmente temos trabalhado muito fortemente a questão de gênero e pessoas com deficiência, por uma razão: o alinhamento com as metas do setor. Somos signatários do Woman in Mining também.

Podemos fazer um balanço das ações na área de Responsabilidade Social?

Eu acho que a gestão social do setor vem amadurecendo muito na última década. As pessoas costumam fazer comparativos com a gestão ambiental. São coisas que você pode comparar sob alguma perspectiva, de avanços regulatórios, legislativos. Mas elas vieram em um compasso diferente, justamente por estas externalidades. Hoje temos uma visão mais voltada para integração. Quando se fala em gestão social, nós estamos no centro da questão nos territórios onde operamos. Pelo menos essa é a forma que nós na Kinross olhamos a área. E nós nos colocamos como agentes entre outros agentes de desenvolvimento sustentável desses territórios. É isso que temos feito na última década. Temos um programa que é o programa Integrar, que vem atuando em quatro frentes: educação, geração de trabalho e renda, cultura e educação ambiental. Há dois anos, em função da pandemia, nós abrimos outras frentes de trabalho, pensando na saúde, na segurança psicológica, garantia de direitos nas populações mais vulneráveis. Essa foi uma necessidade que encontramos. Em 2021 fechamos o ciclo da primeira década de investimentos no programa com resultados muito positivos. Trabalhamos a educação muito focados na questão da qualidade da educação pública. É importante dizer que todos os nossos programas são alinhados com as políticas públicas locais, com estratégias dos entes locais. Isso é muito importante. Na área de educação atuamos fortemente com a Secretaria Municipal de Educação e com a Superintendência da Secretaria Estadual de Educação, atuando para melhorar a capacitação de professores e de gestão.