“Estamos perdendo a oportunidade de reduzir a dependência externa dos fertilizantes”

Os preços globais dos fertilizantes já subiram mais de 50% desde o início da guerra entre Rússia e Ucrânia. Na China, por exemplo, o preço do potássio  subiu 86% em relação ao ano anterior. Os nitrogenados aumentaram 39% e os fertilizantes fosfatados, 10%.

A redução da oferta global e o consequente aumento dos preços desenha um cenário preocupante para a produção global de alimentos, podendo desencadear uma onda de inflação sem precedentes na história recente.

Na semana passada, a Organização das Nações Unidas para Agricultura e Alimentação (FAO) fez um alerta: o índice mundial de preços de alimentos em março atingiu o nível mais alto desde que começou a ser calculado, em 1990.  A crise de fertilizantes ameaça limitar ainda mais a oferta mundial de alimentos, já afetada pela interrupção dos embarques cruciais de grãos da Ucrânia e da Rússia. 

O Brasil, que importa acima de 80% dos fertilizantes que utiliza na agricultura, começa, aos poucos, sentir o efeito da guerra. No primeiro trimestre deste ano, o volume adquirido pelo Brasil caiu para 7,9 milhões de toneladas, 8% a menos do que de janeiro a março do ano passado, quando as importações brasileiras desses insumos bateram recorde. 

Nesta entrevista, o engenheiro químico e consultor em mineração Renato Ciminelli, diretor das Organizações Tech&Trade, analisa o atual momento e as perspectivas para o futuro próximo. Segundo ele, mais do que os impactos imediatos da crise, o que preocupa é principalmente a desestruturação das cadeias produtivas, a exemplo do que ocorreu na pandemia. Além dos fertilizantes, outros insumos importantes, como petróleo e gás, também estão sob pressão. Ele também acredita que as sanções impostas à Rússia tendem a ser flexibilizadas. 

MM-Como o senhor percebe o impacto da atual crise de fertilizantes no Brasil?

Você vê que não há uma ansiedade no Brasil de fato. Existe um primeiro susto. Mas, certamente, já estão sendo negociadas as sanções. Porque se não a agricultura brasileira estaria em polvorosa. E não é o que está acontecendo. Logicamente você tem um efeito no preço: o custo do insumo. O que que isso significa em termos de perdas de negociação? Porque nenhuma negociação é imediata. Vai ter uma fase de transição que a gente não sabe quanto tempo vai durar. O próprio petróleo já está baixando de preço. Agora, o que se fala muito é que, assim como na pandemia, aconteceu uma desestruturação das cadeias produtivas mundialmente. Você vê a falta de equipamentos eletrônicos na indústria automobilística. Carros deixaram de ser produzidos porque não tinha chips. Faltam contêineres etc.

MM-Qual é a extensão  dessa desestruturação?

Tem um debate importante sobre isso. Definitivamente, vão haver desestruturações, de novo, na cadeia logística, na cadeia produtiva. E tanto a pandemia, quanto agora a guerra, cobram o seguinte: o Brasil vai continuar sendo, com a sua indústria totalmente desmantelada, dependente do cenário global? As trocas mundiais vão continuar acontecendo normalmente?

Eu entendo que a questão dos fertilizantes, assim como todos os outros setores, a questão é: tem que se haver uma reflexão. Rever blocos, rever alianças, rever logísticas. Então, eu acho que esses três anos – de pandemia agora, a guerra e, sabe-se lá, o que vem no próximo ano – eles estão cobrando uma modificação da estratégia, tanto local como mundial. 

MM-E o Brasil parece que não tem uma estratégia interna, nem mundial…

É. Estamos importando esse alto volume de commodities e, agora, os preços voltam a se elevar, isso obriga o Brasil a abrir todo seu setor. E o que temos de menos competitivo é a indústria. Mas não é só a indústria. Então, é um momento muito mais de rever o quão dependentes nós estrategicamente devemos ficar. 

E o Plano Nacional de Fertilizantes, lançado em março pelo governo federal?

Foi criado esse plano de fertilizantes às pressas, assim como você está vendo em outros ministérios. É viável? O plano de fertilizantes é viável? Mais do que viável, eu diria é gerenciável?  Eu já sou velho de guerra, vejo que o Brasil tem um problema gerencial muito forte. É o país da descontinuidade. Você nunca pode acreditar que os planos vão virar realidade. Acho que a grande pergunta que se faz hoje, no momento atual, é: vamos aproveitar essa oportunidade? O país não tem política industrial. E há quanto tempo se pede uma? 

MM – Na verdade, o que aconteceu, nos últimos anos, foi a desindustrialização…

Pois é. Eu até entendo se a desindustrialização fosse resultado de uma política industrial que estruturasse. ‘Olha, nós vamos focar tais e tais setores e não esses”. Você vê o caso do Chile. O Brasil também teve uma política industrial na época do governo militar, assim como o Chile. Só que a do Chile foi muito bem sucedida.

Lógico que hoje, no Chile, o que se fala é o fracasso na questão de injustiça social. Porque, no Chile… você já foi a Santiago? Santiago é muito interessante, porque você vê aquele país lindo, maravilhoso e fala: “Nossa, isso aqui é uma fábula, fantástico”, mas ninguém vai pra periferia. Então, é um país de grande injustiça social, em que o autoritarismo ainda persiste mesmo com governos democráticos, supostamente. A transição não é fácil.

Então, eu sei que estamos em um momento em que fertilizantes é uma das grandes questões, assim como energia: preço do petróleo, gasolina, óleo diesel…e, igualmente, aqui o país não tem planejamento. Nós estamos indo pela intuição. Eu acho que as cartas já foram dadas. O Brasil tem todas as condições de aumentar o volume de produção de fertilizantes? Existem alternativas. Então, acho que a grande questão é essa: a agenda vai ser cumprida? Quais os entraves? 

MM-Qual a grande dificuldade na produção de fertilizantes?

A grande dificuldade no setor de fertilizantes está ligada à inteligência. Inteligência de gestão dos planos, das propostas, das carências, das dependências. Também pesquisa, a expansão rural, a questão de escala de produção, a questão de fomento, a questão de um plano muito baseado na inteligência governamental. Cadê o setor privado?’.

Uma inteligência de fomento adequada e compatível com a ambição do plano. Então, eu colocaria que as oportunidades, como você colocou lá, elas estão direcionadas. Se você ler vários documentos sobre onde pode ser expandida a produção, seja de potássio, seja de fosfato, seja de nitrogenados, está muito claro. Logicamente, nossa dependência é altíssima.

MM-Há vários projetos no Brasil em andamento, mas nenhum é novo, nenhuma empresa acelerou por causa da crise…
E nenhum projeto, também, é muito grande. Você não tem nenhum projeto enorme. Por isso que eu falo: nós temos que admitir, hoje, que a dependência vai continuar. Eu não consigo trabalhar hoje no Brasil com a renda de 2050. Eu não consigo ver daqui a cinco anos.

 Porque, na verdade, eu vou lhe falar: sou uma pessoa experiente de vida, e nós vivemos uma sequência de frustrações. Uma após outra, tendo atrasos. Está sendo colocada aí a questão dos biofertilizantes, que é uma nova geração. Mas que também é lento. É quase como você falar: ‘vamos trabalhar com startups’. Isso é lento.

MM-Essa necessidade de inteligência pode ser melhorada?

Por exemplo, EUA e Europa – principalmente EUA – são muito importantes lá os chamados Six Centers, os centros de conhecimento, que não são, necessariamente, universidades. São redes de profissionais, de inteligência, que acumulam conhecimento. Não sei se você já viu, muito comum nos EUA, quando tem problema, encrenca com político ou no exterior (com o Putin, por exemplo) eles tinham logo dez pessoas lá, no mínimo, que entendem a fundo o problema. Sentadas numa mesa, elas delineiam algumas diretrizes de imediato.

Nós temos isso? Não temos. Aqui há algumas pessoas que sabem mais ou menos, mas ao mesmo tempo vendem muito caro aquele conhecimento.

Então, eu sei que a gente deveria investir mais em inteligências, individuais e coletivas. Mas aí vem toda a pressão ideológica. Isso não é uma coisa bem-vinda no Brasil hoje. 

MM-A ciência e a educação ficaram sem verbas públicas no Brasil…

Então, nós estamos perdendo. Por exemplo, minha mulher, Virgínia Ciminelli, é membro da Academia Brasileira de Ciências. O que eu estou notando com este grande pool de cérebros brasileiros intelectuais? Eles estão falando o seguinte: ‘Não nos querem? Deixa eu cuidar da minha vida”. Ou vão embora ou mudam de ramo.

Pessoas que trabalhavam 10, 20 horas por dia porque tinham amor pelo trabalho ou pesquisa, na medida em que são rejeitadas, os intelectuais brasileiros são mais respeitados lá fora do que aqui dentro. São essas pessoas que têm um conhecimento que, em um momento como esse, fossem, talvez, âncoras de uma retomada. Então, de novo: você teria de ter um fortalecimento da inteligência, e essa inteligência se desdobraria em que? Inteligência de recursos humanos, inteligência de fomento, inteligência empreendedora, das empresas…

MM-Comitês e conselhos políticos-sociais podem ajudar?
Foi tudo muito desmontado. E ele foi desmontado de formas muito sutis. Eles estão aí, mas a gente não tem mais confiança. Não sei se mandei pra você aqueles dois eventos que eu estou organizando. Dois eventos sobre ODS – Objetivos de Desenvolvimento Sustentável. Eu sou um idealista, estou sempre liderando conceitos novos, movimentos novos, mas eu sinto que as pessoas estão muito desmotivadas. Lógico que a palavra ‘desmotivação’ é muito mal vista, como você tivesse sempre com sua motivação no pique.
Mas eu noto que a lógica do coletivo, da mobilização, ela foi muito perdida. Já foi uma palavra muito forte no passado. Hoje a palavra ‘mobilização’ é muito mal vista, ideologicamente ela não é bem vista. Qualquer tipo de mobilização. O que nós estamos fazendo aqui é um processo de mobilização para fazer com que a sociedade esteja convergente para um determinado problema e busque soluções. E as várias sociedades: civil, privada, da justiça… Existe uma série de segmentos na sociedade.


MM-Quais as perspectivas, então, para o mercado de fertilizantes no Brasil? Quanto aos prazos e recursos…
Existe a possibilidade de você reorganizar como é feita a aplicação de fertilizantes. A Embrapa e outros centros falam: a gente tem condições de usar menos fertilizantes, mas você teria que, de novo, capacitar o agricultor, criar novas orientações de aplicação, talvez mudar a estrutura dos fertilizantes. E quem sabe, até, é possível você aumentar a produtividade até produzindo fertilizantes menos nobres.

Mas, de novo: quantos anos isso vai envolver? Não estou sendo advogado do diabo, não. Eu só estou dizendo que a gente não pode aceitar ou se engajar a uma proposta otimista demais. Eu acho importante colocar as dificuldades. E um outro ponto, que eu já ouvi isso em alguma discussão, é que o governo não vai ter recurso para o volume de fomento. São mais de R$ 100 bilhões para o fomento. Aí já vem um erro, muito baseado no governo, porque a gente sabe que não vai conseguir. Nós temos que mobilizar um financiamento internacional e privado nacional. Nós temos que engajar as empresas privadas, inclusive de outros setores.


MM – O que acontece são iniciativas isoladas das empresas, que se arrastam há anos por uma licença.
É. As licenças são lentas. Eu vejo que elas deveriam ser priorizadas. O problema das licenças é o que? Medo de licenciar? Se licencia coisas muito mais absurdas. Mas é justamente aqueles que são mais obedientes, as empresas que são mais nerds, são mais aplicadas que muitas vezes sofrem… e não sabem usar, talvez, os artifícios que são usados por outros.
Então, assim, é necessária uma mudança de paradigmas. Que já ocorreu no Brasil, na exploração do cerrado. Tudo bem, demorou, foi longa, mas o Brasil hoje é uma referência na utilização de savanas. O termo lá fora para cerrado é savana. São áreas, são terras improdutivas, em tese, e que se tornaram altamente produtivas. Então, seria quase que pegar esses casos e, talvez, buscar um pouco a velha guarda que participou disso.